Festa dos 107 anos
- Muito bem: feche os olhos, estenda as mãos, conte até oito e veja seu presente! - Disse um homem de meia idade e olhos castanho-sonhadores: sua gravata ao contrário, a metade da camisa de algodão azul desbotado para dentro da calça e o cabelo bagunçado eram indícios de uma sanidade duvidosa que seus parentes aprenderam a ignorar.
- Ah, eu preciso mesmo? - Cecília não se sentia muito a vontade em ficar oito segundos inteiros de olhos fechados na frente de seu tio Dalton; poucas pessoas além dela sabiam que ele tinha problema com, além de outras coisas, cleptomania; e o recente fracasso com sua ex-namorada que, embora ninguém saiba ao certo se o largou por demasiadas tentativas frustadas, ou, após ela mesma vir a compor esse grupo de pessoas, desistência técnica, estava deixando o tio cada vez mais lunático.
Porém, levando em conta a quantidade de observadores, a indubitável fortuna que ele construíra com a microeconomia, a tradicional hora de distribuição de presentes e os belíssimos exemplares de objetos de ostentação que seus primos receberam - carro, celulares de ultima geração, até um caríssimo vaso de cristal - seria conveniente fechar os olhos e esperar aquele não tão longo intervalo para conferir se iria ganhar o seu tão sonhado carro. De fato ela perdeu mais tempo pensando se o faria ou não do que realmente agindo, um costume que Cecília orgulhosamente não conseguia evitar.
- Ta legal, tio. Mas nada de gracinhas.
- Eu não faria isso, querida, nem se eu pudesse - mentiu o tio.
No que a menina abriu suas mãos, foi posto um objeto pesado, liso e arredondado encostar em suas palmas e teve uma sensação refrescante, como um generoso gole de vinho de hortelã na plenitude do verão - a melhor sensação do mundo, com dizia o seu pai - que a fez ignorar a condição de oito segundos e abrir seus olhos antes da metade.
O presente que seu tio lhe dera não foi de todo inesperado: ela sabia que sua excentricidade falaria mais alto e, mantendo uma ingênua esperança, esperava algo extremo como dar de presente um carro para alguém que ele tratava como criança sempre que tivesse a chance. Apesar disso, se moldasse os pensamentos à essa forma, seu tio Dalton deveria sair distribuindo carros de presente para todos os seus - nem tantos - amigos.
Um sorriso de surpresa surgiu em seu rosto tenro, ainda que, localmente inflamado, legado de sua fase adolescente, e concentrou-se no que tinha nas mãos: uma maçã.
Uma maçã de cristal, de epicarpo roxo-claro, perfeitamente lisa, de um tamanho um pouco maior que uma bola de bilhar embora suas mãos fechadas não conseguiriam contê-la toda, sua base era lilás e plana a fim de que ficasse em pé, e possuía um cabo lilás que a tornava uma réplica perfeita da fruta. Ainda sentia como se estivesse recém saído de um banho no lago do vale entre as colinas no leste da cidade.
- Puxa....uma maçã. - a surpresa rapidamente se transformou em um desapontamento sincero.
- Cecília! Mostre que lhe foram ensinados bons modos e agradeça o tio pelo belo presente. - Ordenou sua mãe que se encontrava na outra metade da mesa. Recebeu de sua filha um olhar misto de desaprovação e súplica. Não houve membro da família naquele momento que deixou de ouvir o estranho gemido soltado quando ela viu o presente da filha.
- Obrigada, tio Dalton. Desculpe se fui rude, mas eu fiquei realmente surpresa com o presente.
- Ora, é sempre bom presentear as pessoas com algo que elas não esperam. Ainda mais hoje que nós, os 'não-aniversariantes', temos que presentear 8 pessoas. - Dalton era o único na família capaz de comprar bens para todos os aniversariantes dessa data. Esse era um fato sempre desconsiderado, tamanha a festividade que a reunião familiar trazia. - Mas, me diga, Cecília, o que você estava esperando?
- Nada de mais - respondeu de bate-pronto - Mas, entenda, ano que vem eu entro na universidade e o senhor sabe por experiência própria como é longe....
- Sei sim, e ficarei feliz em levá-la ao ponto do bonde sempre que se atrasar.
- Ah, que ótimo. - respondeu desapontada, com um sarcasmo que somente sua mãe percebeu, sendo, então, recriminada por essa atitude mais tarde.
- Não seja geniosa, eu gostaria muito de receber essa maçã de seu tio se eu tivesse a sua idade. - Falou sua mãe. Olhava a maçã como um atleta almeja o pódio.
- Eu não faria isso, querida, nem se eu pudesse - repetiu Dalton, agora servindo-se de seu 6º pedaço de bolo de coco, que possuía 3 andares antes de rapidamente serem consumidos em uma festa que possuía mais aniversariantes do que convidados, foi feito pela melhor confeiteira da cidade, curiosamente conhecida como "Dona Confeiteira" por seus auspícios, e no seu topo tinha velas com a forma dos números um, zero e sete, que era a soma das idades de todos os aniversariantes. - Além do mais, recorra ao bem garantido em detrimento da sua esperança de ganhar 'não-sei-o-quê-lá' você gostaria. Pode não parecer, mas foi o presente mais importante que eu dei hoje. Admita, é uma bela maçã - a sala ecoou com gargalhadas dos outros presenteados.
Ao tempo que lhe dera vontade de passear, Cecília tomou os risos como uma deixa para sair de casa. Deixou seu presente em cima da escrivaninha, e saiu. A poucos passos fora de casa foi tomada por uma vontade inédita e, embora não se apegasse a bens materiais, ao passo de que, considerando ser um pertence novo, um presente, tinha essa aura de novidade, resolveu levar a maçã consigo. Ao entrar, ouviu algo que, mesmo que não tenha entendido, a estremeceu:
- Você está proibida de encostar naquela maçã, e ambos sabemos o porquê. Agora é responsabilidade da Cecília. Só podemos torcer para que ela faça emprego do bom senso. As coisas não vão ser fáceis como quando nós éramos crianças... - O tom pesado dessas palavras que seu tio dirigiu à sua mãe, em contraste da confraternização do restante da família, encheu sua mente de pensamentos. Pegou a maçã sem ser vista e voltou a sair.
0 comentários:
Postar um comentário